Batman Eternamente: a novelização
Novelizações de filmes podem parecer coisas estranhas, e até mesmo sem propósito, no atual cenário de consumo da cultura pop em que vivemos. É tão fácil simplesmente acessar um serviço de streaming e encontrar aquele filme que você deseja reassistir. E para os amantes da mídia física os valores atuais de um DVD, ou até mesmo Blu-ray, podem ser mais acessíveis para aqueles com paciência de buscar promoções. Porém, nem sempre foi assim.
No mundo pre-internet, o VHS não era tão barato e existia um longo espaço de tempo para que um filme saísse dos cinemas e ganhasse as locadoras, ou até mesmo a TV. Mas e se alguém gostasse tanto do filme, que desejasse tê-lo antes mesmo do lançamento em home-video? Era aí que as adaptações entravam. Os fãs de quadrinhos mais velhos talvez ainda lembrem com carinho das adaptações em quadrinhos de filmes como Batman (1989), Conan (1984) e toda a franquia de filmes de Star Wars e Star Trek, que também tiveram suas versões em quadrinhos. Com os livros o princípio era o mesmo.
Recentemente, no mercado brasileiro, tivemos o retorno de uma dessas novelizações, com a editora Pipoca e Nanquim republicando a novelização do primeiro filme do Conan. O interessante do formato literário para esse tipo de adaptação é que existe um espaço maior para alterações no roteiro e até mesmo o acréscimo de ideias, cenas e conceitos que não estão presentes no filme original. Isso tudo vai depender do contrato que o escritor, ou escritora, terá com a editora e o estúdio e o nível de controle criativo dado à pessoa que fara a adaptação para o livro.
É aqui que entra Peter David adaptando o marcante (seja para o bem ou para o mal) Batman Eternamente. Esse é nome conhecido dos fãs de quadrinhos com suas fases icônicas à frente de Spider-Man 2099, The death of Jean Dewolff, Incredible Hulk, Aquaman e X-factor. Mas ele também possuiu uma carreira no mundo literário com séries que se passavam no universo Star Trek e Babylon 5 e a novelização do primeiro filme do Homem Aranha dirigido por Sam Raimi.
Agora vamos mergulhar nas diferenças que o livro possuiu em relação ao filme. Batman Eternamente foi exibido pela primeira vez para o grande público em 16 de julho de 1995, enquanto o livro foi publicado no início do mesmo ano. Isso pode indicar que Peter David provavelmente só teve o roteiro como base e, talvez, algumas imagens fornecidas pelo estúdio, já que o livro foi originalmente publicado pela própria Warner.
Os primeiros três capítulos são completamente inéditos a qualquer coisa relacionada ao filme. Logo no início voltamos ao momento onde o jovem Bruce vê seus país sendo assinados. É evidente que David está dando tudo de si para melhorar essa história. Também fica óbvio que ele tem os filmes do Tim Burton em mente e está o tempo todo criar uma conexão como se esse fosse um terceiro filme. Todo esse momento do jovem Bruce é narrado num estilo similar a um fluxo de consciência que termina com Bruce encontrando o que virá a ser a Bat-caverna e com uma voz, que é descrita como se fosse um demônio, ordenando o menino a se tornar o Batman. A voz até mesmo indica que como ele deve construir a caverna em detalhes e quando Bruce nega, e diz que aquilo não é a casa dele, o “espírito” responde que aquilo é o inferno e ao mesmo tempo é a sua nova casa. No fim, o jovem Bruce aceita aquela entidade em sua vida e o nosso narrador diz que foi aquela a primeira vez que ele dançou com demônios a luz do luar.
No capítulo seguinte vemos um jovem Edward Nygma sofrendo bullying no colégio ao mesmo tempo que ele já demostra suas incríveis habilidades de memória fotográfica e uma arrogância latente. Ele observa um jornal que fala sobre o assassinato dos pais do Bruce e traz uma foto do órfão sobrevivente que parece já ter em seu rosto a determinação de alguém que parece superior aos demais (aos olhos do futuro Charada). Isso fascina Nygma que já começa com sua obsessão pela figura de Bruce. Esse capítulo se encerra com mais um ataque do valentão da escola que coloca Nygma num coma e o nosso narrador da a entender que foi esse golpe que alterou a psique do personagem para sempre.
O terceiro capítulo nos mostra Harvey Dent, logo após os eventos do filme Batman: O Retorno. Vemos um acordo sendo firmado entre Batman e ele indicando que ele é uma das poucas pessoas que o cruzado encapuzado confia na cidade, quase como se ele também ocupasse o papel de Gordon nesse universo. A carreira de Dent tem uma guinada conforme ele vai prendendo a gangue remanescente do Pinguim e até mesmo a menção de que Batman o teria o salvado de uma criminosa intitulada Era Venenosa. Isso se assemelha muito ao plot que da série animada do Batman, que incialmente começou com a ideia de ser derivada dos filmes do Burton. Toda essa parte do livro torna a relação futura que veremos entre Duas-Caras e Batman bem mais sólida e interessante. Dá propósito a Dent, que se sente traído pelo herói que prometeu ajudá-lo na luta contra o crime.
A partir daqui, adentramos no território dos eventos que estão no filme original. Ainda temos algumas diferenças, como uma menção direta da existência da LexCorp quando outras empresas que competem com a Wayne Entreprise são citadas. Temos também a fuga de Duas Caras do Asilo Arkham com direito a um assassinato brutal de um dos funcionários numa cena digna de um bom filme de terror. Outro detalhe interessante que é melhorado pela a escrita de Peter é a maneira como Bruce está encarando a sua identidade de Batman. Ele basicamente se refere ao Batman quase como uma segunda personalidade que ele parece quase não gostar, quase como uma maldição. A narração e os pensamentos dele dão a entender que isso é um efeito dos acontecimentos dos dois filmes anteriores, principalmente a morte do Coringa, quem ele entende haver assassinado.
Boa parte das falas do filme original estão aqui e até mesmo algumas descrições de cenários. Uma mudança fundamental e que melhora a história é a maneira como Dick Grayson é descrito. O tempo todo, Peter faz questão de indicar que ele tem no máximo 15 anos. Talvez até mais jovem, já que o termo “criança” é usado constantemente para se referir a ele. Isso também facilita em muito em aceitar toda a personalidade de jovem rebelde radical e descolado típico dos anos 90.
Vale lembrar que, supostamente, existe uma versão de diretor desse filme (#releasetheSchumacherCut) e que, muito provavelmente, David tenha usado essa versão estendida do roteiro para basear seu livro. Kevin Smith diz ter essa versão em sob sua posse. Por exemplo, temos uma cena onde a doutora Chase Meridian tem sua bolsa assaltada enquanto andava pela rua e é ajudada pelo jovem Dick Grayson e seu pai. Nesse momento, temos um desenvolvimento um pouco maior do personagem, além de um dialogo com seu pai, que acaba gerando um paralelo com o que viria a ser a futura relação com o Batman.
Depois disso, temos a trama seguindo de maneira bem próxima ao que temos no final, mas com a vantagem de termos a possibilidade de adentrar no que cada personagem está pensando em cada cena, o que dá uma camada a mais de aprofundamento de personagem para cada um. E ao que parece, David também está se esforçando em transformar Chase Meridian numa personagem mais interessante do que a psicóloga assanhada estereotipada do filme. Ela segue tendo uma enorme atração sexual pelo Batman (quem pode culpa-la? É o Val Kilmer no auge), mas constantemente questiona o próprio profissionalismo e a tendência que ela diz ter por figuras perigosas. Essa mesma técnica de adentrar nos pensamentos do personagem também melhora em muito Grayson e acentua a sua decisão de se tornar Robin.
As alterações ficam mais evidentes no clímax da história, onde o Charada usa uma roupa que o faz parecer muito mais forte do que é, com a cabeça raspada, deixando o resto de cabelo formando um ponto de interrogação. Quem sabe uma brincadeira com o fato de o personagem ter usado o Veneno nos quadrinhos. Ele até faz uma piada dizendo “Hasta la vista, baby. It’s me Arnold Schwarzenygma”. Anteriormente, ele também faz uma referência ao Maskara. Talvez coisas que possam existir na versão do diretor. O fim do Duas Caras é diferente. Num confronto final com o Robin acontece um diálogo, onde Grayson diz que o vilão adora brincar com a sorte e julgar os demais com sua moeda, mas que ele nunca se coloca em julgamento. Duas Caras decide apostar, quase como se fosse forçado devido à sua obsessão, e acaba tirando o lado ruim da moeda e, por causa disso, se joga do abismo onde está e se mata.
Depois desses momentos, o livro se encerra como no filme. O resultado final do livro acaba sendo uma versão melhorada do filme, mas ainda é uma história fraca, principalmente quando a pensamos como uma continuação direta dos filmes de Burton. Porém, é fascinante ver um autor desse calibre batalhando contra esse roteiro e usando todas as suas habilidades para melhorar a trama. Também aprendemos como um bom escritor pode fazer até uma história ruim ficar melhor, somente pelo uso de algumas técnicas de escrita. Uma maneira curiosa de aprender as diferenças de possibilidades narrativas de mídias diferentes e o que funciona em uma e em outra não. Até onde eu sei, esse livro nunca foi lançado no Brasil e todas as informações retiradas para esse texto são da versão original da obra.
Mas de qualquer maneira a luta segue viva: #releasetheSchumacherCut