Eu ouvi o CD do J. M. DeMatteis para você não precisar ouvir
(Nota do Carlos: Cedi esta edição da coluna Batzarro ao Thiago Brancatelli porque o assunto merece!)
Até nosso amado Roberto Segundo, em seu ímpeto fútil de dizer que a Marvel não tem clássicos, vai concordar em dar esse título para uma certa história em seis partes extremamente pesada e psicologicamente densa chamada A Última Caçada de Kraven.
Assim como nenhum marvetinho enjoado pode negar a preciosidade que é a Liguinha cômica, que mesmo sem os principais pesos pesados da editora acabou se tornando para muitos a Liga da Justiça definitiva.
A única relação entre obras tão diferentes é um nome comum nos créditos das duas:
J. M. DeMatteis, o cara que roteirizou a fase mais sombria e perturbadora do Homem-Aranha e um dos escritores da fase mais divertida e engraçada da Liga.
O DeMatteis é desde sempre um dos meus roteiristas favoritos. Eu cresci lendo o Aranha dele, eu achava incrível o que ele fazia no título. E depois disso, lendo o trabalho dele na DC e também suas obras autorais, como Brooklyn Dreams, ele só se consolidou como um daqueles autores que eu tenho confiança em ler o que ele quiser escrever. Já que o assunto daqui é Batman, vale lembrar que, além de trabalhar o personagem na Liga, o roteirista também fez a ótima Batman Vs Duas-Caras: Crime e Castigoe dois arcos em Legends of the Dark Knight, incluindo a história Going Sane, retornando a um plot rejeitado anos antes pela DC e que acabou se tornando um conto sobre o Aranha sendo enterrado vivo tempos depois. Sem contar, claro, os dois crossovers entre o Homem-Morcego e o Cabeça de Teia, a história Disordered Minds e sua sequência New Age Dawning (clica aí nos nomes pra ler minha coluna sobre elas, eu ainda tenho muito mais o que falar sobre esse cara, cêis não têm nem ideia).
Mas é engraçado como a gente se engana achando que conhece tudo sobre nossos ídolos. Lendo um pouco sobre o DeMatteis, eu fiquei sabendo que ele começou como jornalista. Mais especificamente como crítico musical. O que eu achei legal demais, já que música sempre foi uma parte essencial da minha vida. Ele inclusive abandonou essa profissão quando, ao escrever para a revista Rolling Stone uma crítica negativa a um álbum do Grateful Dead, passou a receber diversas ofensas dos fãs da banda. Foi aí que ele se jogou 100% nos quadrinhos (uma área completamente livre de fãs tóxicos e ofensivos, como todos nós sabemos).
Mas pesquisando mais um pouco, eu vi que não foi tão 100% assim.
Desde jovem, o grande sonho do garoto J. M. era ser músico, tendo passado por diversas bandas ao longo da vida.
Mas, mais do que apenas uma ilusão juvenil e diferente de sua carreira como crítico, ele continuou empenhado nisso mesmo já firmado como grande roteirista de histórias em quadrinhos. Ao ponto de, como eu descobri, ter gravado um CD em 1997.
E eu não sei vocês, mas no momento que eu soube isso, eu precisei escutar com meus próprios ouvidos o que seria aquele CD.
Mesmo sabendo da possibilidade de ser algo incrivelmente ruim, algo totalmente ausente de qualidade, ou que possa passar longe, muito longe de qualquer coisa que se assemelhe ao meu gosto musical.
E foi o que eu fiz.
Eu ouvi o CD do J. M. DeMatteis.
Pra você não precisar ouvir.
E vou falar dele agora.
O álbum se chama How Many Lifetimes? e é assinado com John Marc De Matteis.
É bom?, você me pergunta. E não, não é bom. Nem vou criar suspense em relação a isso. Mas existe uma diferença entre não ser bom e ser ruim. E pra decidir se é ruim, eu vou precisar dar uma passeada verbal por ele.
Caso o DeMatteis leia isso tudo e se sinta ofendido… bom, ele vai saber exatamente como o Grateful Dead se sentiu.
Pra começar, quem for aventureiro de se aventurar nessa aventurosa aventura musical precisa se esforçar pra passar pela primeira faixa, a horrenda e açucarada Sanctification, que possui como único ponto positivo ter apenas 1 minuto e meio. Depois disso, dá uma melhorada quando vamos para Every Day, que parece soar como The Who, mesmo sem soar nada como The Who. Talvez por parecer a todo momento que ela vai se transformar numa cover mequetrefe de Pinball Wizard, apesar do refrão soar mais como um Hootie & the Blowfish. A faixa-título How Many Lifetimes tem um clima country, mas que eu não consigo afirmar ao certo se é proposital ou não. É que nem aquela cena exagerada num filme dramático, que você não sabe se deve rir ou não porque, bem, talvez não tenha sido exatamente esse o intuito da cena. Mas se quiser refletir sobre a verdadeira intenção da música, você tem looongos seis minutos pra isso.
É quando a gente começa a perceber um certo padrão. Todas músicas parecem alguma outra coisa. Todas soam como algo que você já ouviu. Você passa mais tempo batendo a cabeça pra lembrar o que aquilo te lembra do que curtindo a música em si.
A mistura de influências é algo a se comentar. Margaret poderia ser tocada em qualquer feira renascentista e ninguém estranharia. Nesse sentido, Free talvez seja a música mais interessante. Começa com uma espécie de… George Harrison tentando tocar um baião(!). Depois vira algo parecido com um Led Zeppelin pouco inspirado encontrando um Michael Jackson com dor de garganta, que também parece dar as caras na faixa Take The Name. A música seguinte, Time For Love, tem um comecinho que taria facilmente em qualquer gravação do Lulu Santos, e depois passa pra um Roupa Nova simpático, com um vocal assim meio Nando Reis. Pra manter dentro das referências MPBísticas, BABA Rain conta com um violãozinho emulando O Caminho Do Bem do rei Tim Maia. Samadhi Breeze tem momentos de puro Raul Seixas.
Mas justiça seja feita, ao menos essas músicas têm seus atrativos. You Are, por outro lado, é tão bobinha, tanto música quanto letra, que nem vale a pena pensar nela. Já para aguentar Diane é recomendável preparar uma bela garrafa de café para não correr o risco de pegar no sono. E enfim temos Fortunate Slave/A Prayer fechando o disco, que soa ligeiramente melhor do que as músicas do Joe Exotic, o Tiger King.
Mas então, é um CD ruim?
Hmmmnnnnããão necessariamente. E talvez esse seja o maior problema. Não existe personalidade o bastante em How Many Lifetimes? para ele ser considerado devidamente ruim, assim como não existe personalidade o bastante pra ele ser considerado minimamente bom. É um festival de “MEU DEUS EU CONHEÇO ISSO DE ALGUM LUGAR” que nunca deixa você embarcar na obra em si.
Para aumentar a apatia, temos um J. M. DeMatteis completamente desprovido daquilo que nós leitores de quadrinhos mais amamos nele: as palavras. As letras das músicas, em sua maioria, são bobas, clichês, pouquíssimo inspiradas. Salvo alguns poucos momentos, especialmente quando se entrega ao cantar sobre o líder religioso indiano Meher Baba e seus ensinamentos, o DeMatteis compositor é algo extremamente decepcionante.
O que nos leva ao problema seguinte: o DeMatteis cantor. E não é que ele cante mal. Mas é alguém mediano se levando muito a sério, e isso nunca é bom. Caso cantasse de uma forma mais solta, mais despretensiosa, com certeza seria muito mais fácil passar pelos 45 minutos do álbum.
Então.. melodias sem personalidade, letras pouco inspiradas e um vocal mediano que se leva a sério demais.
Acho que englobamos a trindade do que seria considerado o talento de um músico.
Dito isso, escutar o CD foi sim uma experiência divertida.
É como assistir os bônus no DVD de um dos seus filmes favoritos. Às vezes eles podem não ser bons, mas é legal ter uma experiência mais completa, ver as cenas deletadas que claramente tiveram um motivo para ficarem no chão da sala de edição, ouvir os comentários do dublê do coadjuvante que participou de um take no fundo da cena, saber do figurinista por que ele escolheu uma camisa azul clara em vez de uma azul marinho. Você acaba conhecendo melhor aquele filme. Você se sente mais próximo dele.
Então, por mais que eu tenha ouvido o CD do J. M. DeMatteis pra você não precisar ouvir…
Ouve. Tem nos streamings, tem no YouTube.
Nem que seja pra procurar as referências, ou pela curiosidade em ouvir a voz de alguém que você só conhece por palavras impressas, ou pra ver se você concorda com o que eu falei sobre cada música.
No mínimo você vai ter mais assunto na próxima vez que alguém comentar sobre A Última Caçada de Kraven.