Traduzindo o Batman
Todo quadrinho que você traduz é uma aula. O tradutor precisa levar vários elementos em consideração no processo: a voz do autor, a voz dos personagens, a fluidez do texto, o respeito com o recado que é dado… mais um montão de coisas. Algumas, aliás, você descobre que existem depois de achar que já viu de tudo.
Trabalhar em um mesmo personagem não é diferente porque, independente de certos contextos e regras que o autor deve seguir (ninguém vai fazer o Batman dizer “Tô vazando, galera” depois de uma reunião com a Liga da Justiça), é inevitável que, em algumas minúcias, a voz do roteirista seja incorporada pelo personagem. Por isso, não existe só um Batman. O Batman é todos aqueles que o escrevem, desenham, arte-finalizam, enfim, colocam o personagem pra dar cagaço em criminoso e passar o resto da vida embaçando num negócio que aconteceu há mais de 70 anos.
O mesmo acontece com o tradutor. É claro que, com isso, não quero dizer que o tradutor seja algum tipo de escritor, mas quando o quadrinho que estava no idioma original passa pelo mecanismo de regras e raciocínio que é a tradução, a mesma inevitabilidade que garante a voz do autor no papel do personagem garante também a do tradutor, que vai aplicar a sua experiência pessoal uma hora ou outra.
A maneira que o personagem pensa e se comporta também é afetada por outro fator: a época. O Batman do Neal Adams é bem diferente do Batman do Scott Snyder. A cultura muda, gerações se renovam, o tempo é circular e o personagem precisa refletir isso, senão, fica estagnado. Todo esse ciclo também faz parte da lição que o tradutor tem que aprender e não pode ignorar.
Eu tive sorte da minha experiência com o Morcegão incluir várias dessas circunstâncias, como Detective Comics, adaptações do jogo do Playstation (Arkham City e Arkham Knight), Batman: Dark Detective, Batman Os Novos 52, o hilário e suave Pequena Gotham e o jovial e maneiríssimo Academia Gotham, pra citar alguns.
Cada investida foi uma experiência diferente:
Os gibis mais antigos, anos 70 e 80, pediam um vocabulário um pouco mais “comportado”, mais próximo da abordagem clássica do personagem, uma linguagem quase teatral. As histórias com o Coringa (cuja fase solo de 9 edições publicadas em meados dos anos 70, aliás, também traduzi) pediram uma atenção especial. Era outra cadência de diálogo/monólogo, além de várias piadas de duplo sentido que precisaram ser adaptadas para o português.
Academia Gotham, uma excelente HQ de super-herói mais recente e cheia de personagens jovens, me permitiu desviar da rigidez de um texto solene, encontrar um novo tipo de fluidez textual e me forçou a pesquisar algumas expressões atuais que conectasse a HQ ao público mais atual. Além disso, os “climas” de Academia Gotham são bem variados. Tem muito humor, mas também tem muito mistério, às vezes até terror, e o texto se adapta a cada ambientação.
Batman 52 talvez tenha sido o meio termo entre as duas abordagens que acabo de citar. O vocabulário variava de personagem pra personagem, além de ter sido o maior período que passei “em Gotham.” Foram 52 edições e, provavelmente, a minha maior escola até então.
É preciso lembrar, também, que é raro (se é que acontece) que o tradutor seja responsável por 100% dos textos que chegam ao leitor. Como qualquer ofício, o produto final é fruto de um trabalho coletivo, e o texto ainda passa pelo copidesque, revisor e pelo editor do material, e, se você estiver aberto, todas as pessoas que efetuam esses processos vão te ajudar a te transformar num tradutor melhor.
Como eu disse no começo, isso tudo é aprendizado, e o universo do Batman, nesse quesito, tem uma vantagem sobre outros. Gotham tem um arranjo de personagens bastante variados, cada um com personalidades distintas (às vezes, num mesmo personagem), com seu ritmo e atmosfera, com humor e densidade, e tudo isso ganha ainda mais pluralidade devido a supracitada abordagem aplicada por cada autor e o trabalho coletivo da editora que trabalha pra entregar o produto ao público.