Eu Matei Bruce Wayne
Uma das mais recentes sagas do Batman, de Tom King, traz a revelação de que o Batman gosta de arriscar sua vida porque tem tendências suicidas. Isso poderia explicar o comportamento arredio, sombrio e pouco amigável do Homem-Morcego. Mas as implicações e nuances psicológicas dessa afirmação poderiam ir muito mais longe, mostrando que o Batman matou um lado importante da sua psique: Bruce Wayne. E é sobre isso que vou discorrer agora.
Eu já escrevi alguns textos mostrando os problemas que tenho com o conceito do Batman, como este e este. Sabendo disso, meu amigo Carlos Vázquez me chamou para escrever sobre minha relação de ódio com o Homem-Morcego. Mas, diferente dos outros textos, neste eu resolvi ser mais sutil e investigar a morte psíquica de Bruce Wayne através de conceitos da psicanálise e da psicologia. Assim, quero mostrar, que longe da fortaleza que o Batman parece demonstrar, ele é um homem acossado por neuroses e de uma construção psicológica tão bizarra e frágil quanto a dos internos do Asilo Arkham.
Utilizando a teoria psicanalítica através do livro Teoria da Literatura: Uma Introdução, de Terry Eagleton: “Eros, ou a energia sexual, é a força que constrói a história, mas está encerrada a uma trágica contradição com Thanatos, ou o impulso da morte. Lutamos para avançar, mas estamos constantemente levados para trás, buscando retornar a um estado anterior à nossa existência”. Eros e Thanatos, representam o grande embate entre heróis e vilões. Enquanto um é o impulso construtor, os mocinhos, que reparam os danos, que crescem e se engrandecem, os malvados são o impulso destruidor, que fazem a sociedade regredir ou manter-se como está. No caso deste artigo, teríamos Bruce Wayne, o empresário, o amante, como Eros. Já Batman é o impulso da morte, que quer destruir tudo que está errado na sociedade – para os SEUS valores e nos SEUS termos.
O mesmo ocorre dentro de nós mesmos, em nossa psique. Por vezes queremos nos destruir e somos os vilões da história, quando nos auto sabotamos, ou levamos nossa autoimagem para as cucuias. É quando a culpa nos corrói. Por outro lado, nos sentimos heróis quando fazemos algo construtivo, quando ajudamos alguém, ou recebemos algum elogio ou tapinhas nas costas. Essas motivações dividem o íntimo dos seres humanos e, assim como o embate dos supers, são forças intrínsecas e eternas (tal Eros e Thanatos), pelas quais a humanidade sempre estará dividida. Como já vimos em Cidade Castigada, de Brian Azzarello e Eduardo Risso, foi por culpa de Bruce que seus pais foram mortos. Talvez por essa razão ele queira um castigo igual: se juntar a eles na morte.
“Para Freud, é o desejo de voltar a um lugar onde não podemos ser atingidos, existência inorgânica que antecedeu toda a vida consciente, que nos leva a lutar por avançar; nossos inquietos apegos (Eros) são servos do impulso da morte (Thanatos)”, assim Eagleton explica nossa necessidade pelo escapismo, para experimentarmos da criação e destruição de um universo num casulo onde estamos ilesos da dor das descobertas e do final eterno. Onde as mortes das pessoas não nos atingem e nos deliciamos com a dor dos outros sem culpa. Neste cenário, que poderia ser a leitura de um livro ou de um gibi, se encontra o Batman. Castigando violentamente os criminosos para expiar sua culpa, arriscando sua vida para chegar mais perto dos pais que estão no cemitério. No momento em que Bruce Wayne se transforma em Batman, o menino que viu os pais morrerem na sua frente não pode ser atingido. Ao vestir o uniforme de Batman, Wayne entra num casulo, num útero, onde o menininho não é atacado, mas sim, o temível homem-morcego.
Batman sempre representou o arquétipo do Guerreiro: “quando a realidade se torna um ambiente inóspito e instável, quando a dignidade é usurpada e o respeito inexiste, o Guerreiro se vê obrigado a lutar e vencer a hostilidade através da força para conquistar o respeito e a segurança”. Grant Morrison acerta quando faz Batman empunhar uma arma contra Darkseid em Crise Final, pois para o arquétipo do Guerreiro “o espírito de luta é o que toda pessoa precisa para vencer os obstáculos, o medo, um inimigo, suas próprias fraquezas, enfrentar problemas pessoais, físicos ou psíquicos, superá-los e atingir um patamar mais elevado de dignidade pessoal”, segundo José Martins, no livro A Natureza Emocional da Marca. Empunhar uma arma é abraçar de vez o impulso de morte que Bruce Wayne sente. Uma arma que poderia ter sido apontada para si mesmo, e foi, quando Batman desapareceu com o senhor de Apokolips.
Por outro lado, Batman sofre de um enorme Complexo de Messias somado a um forte solipsismo. Explico os dois. Afligidos pelo Complexo de Messias louvam sua própria glória ou alegam absoluta confiança em seus próprios destinos e capacidades e nos efeitos que terão sobre um grupo de pessoas ou aspecto da vida. O solipsismo é a consequência extrema de se acreditar que o conhecimento deve estar fundado em estados de experiência interiores e pessoais, não se conseguindo estabelecer uma relação direta entre esses estados e o conhecimento objetivo de algo para além deles.
Vejamos então: adotar pupilos como Robins, os treinar, educar, dar casa e comida seria uma mistura de Complexo de Messias com aspectos do Complexo de Édipo tentando compensar a morte dos pais com filhos que preencham sua vida do amor e da luz que os progenitores projetavam em Bruce Wayne. Já o solipsismo do Batman, eleva a sua paranoia a um estado tão enorme que ele chega a criar subterfúgios para dar cabo de seus companheiros na Liga da Justiça, como vimos na saga Torre de Babel, de Mark Waid. O Batman não confia em ninguém como vimos também na saga A Morte da Família, por Scott Snyder e Greg Capullo. Todo esse conhecimento de si mesmo que o Batman pensa em ter, acaba se tornado seu pior inimigo, afinal, ele confia demais em si mesmo e se julga infalível.
Bob Dylan mudou seu nome em rejeição a seu pai e ao nome de sua família. Bruce Wayne se tornou um outro e esse outro se tornou sua identidade principal. Os junguianos enfatizaram o poder da fome pelos pais, parte do Complexo Paternal, que força as pessoas a buscarem repetidamente partes não-atualizadas do arquétipo do pai no mundo exterior. Para encontrar o pai perdido dentro de si, o pai interno, e entregá-lo a seus sucessores, passam, assim, a exigir orientação parental para readquiri-lo. Batman buscou no manto do super-herói – um arquétipo que, por si só, já representa os cuidados paternos, se não com os filhos, mas com o mundo todo – essa completitude. O Batman se tornou tanto um representante divino do pai que ele acabou criando muitos Robins-Filhos, inclusive um filho verdadeiro que era Robin.
Mas a verdade é que o Batman acabou fadado a repetir a ausência paterna, não sendo um deus-pai perfeito. Ele falhou com Dick Grayson, que se afastou para fundar os Novos Titãs. Deixou que Jason Todd morresse pelas mãos do Coringa. Recentemente, Tim Drake também “faleceu”. E Damian Wayne, o filho verdadeiro, morreu na frente do Batman. Wayne, como pai, decepcionou seus filhos, deixando o mesmo abismo que a morte colocou entre ele e seus pais. Em Batman & Robin: Eternos, vemos a procura desesperada de um herdeiro que esteja à altura de suas necessidade e, para isso, recorre à nefasta Mãe e seus métodos nada ortodoxos, para que ela enjambre e fabrique esse sucessor.
O solipsismo diz “eu sou meu próprio Deus”. Tornar-se sua própria divindade significa independência e solidão. Significa que você também não precisa do outro, seja de um pai, uma mãe ou um filho. Significa que você não precisa de ninguém, e que sozinho você se basta. O playboy de Gotham matou Bruce Wayne, o humano, para ficar com Batman, o Deus. Batman é onipotente, onisciente e, conforme a DC Comics quer, ele também é onipresente. O Batman é suicida, mas quando você é seu próprio Deus, matar a si mesmo se torna uma blasfêmia e um sacrilégio. O Batman é suicida, mas seu maior medo é matar o seu Eu-Deus.
Assim para finalizar, cito o célebre discurso de Friedrich Nietzsche, “Deus Está Morto”, de Assim Falou Zaratustra:
“Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós! Como haveremos de nos consolar, nós os algozes dos algozes? O que o mundo possuiu, até agora, de mais sagrado e mais poderoso sucumbiu exangue aos golpes das nossas lâminas. Quem nos limpará desse sangue? Qual a água que nos lavará? Que solenidades de desagravo, que jogos sagrados haveremos de inventar? A grandiosidade deste ato não será demasiada para nós? Não teremos de nos tornar nós próprios deuses, para parecermos apenas dignos dele? Nunca existiu ato mais grandioso, e, quem quer que nasça depois de nós, passará a fazer parte, mercê deste ato, de uma história superior a toda a história até hoje!”